Nós por nós

A imposição da maternidade para a menina piauiense de 12 anos

Caso está sob segredo de Justiça e as crianças estão sob custódia do Estado

Por Eduarda Nunes

Ilustração: Ani Ganzala

No segundo semestre de 2022, o estado do Piauí revelou ao Brasil o caso de uma menina de 11 anos que estava grávida pela segunda vez, fruto de recorrentes violências sexuais que sofria, e passava por mais um impedimento no seu acesso ao aborto legal. Nesta reportagem, a chamaremos de Madalena*, nome fictício, para não confundir sobre qual criança estaremos nos referindo ao longo do texto. O caso veio à tona a partir da publicação no jornal Folha de São Paulo pela jornalista Yala Sena. Madalena e seus dois filhos estão sob custódia do Estado e todas as informações sobre seus desenvolvimentos e o desenrolar do caso estão sob segredo de justiça. O bebê da segunda gestação nasceu em março de 2023 e deverá ser entregue à adoção.

Foi em setembro de 2021, na cidade de Teresina, capital do Piauí, a primeira vez que a menina deu à luz ao primeiro fruto dos estupros sistemáticos sofridos. Nesta primeira gestação, a própria mãe de Madalena impediu sua filha do acesso ao aborto legal que ela tinha direito, com base também nas informações recebidas de um médico de que havia riscos de morte no procedimento. Madalena tinha apenas 10 anos e teve que prosseguir com a gestação.

Após o nascimento de seu primeiro filho, a menina, que já tinha entrado na escola com muito atraso, aos 8 anos, abandonou os estudos definitivamente. Além disso, passou a viver em conflito com os pais e se negava a ter acompanhamento psicológico. Em um processo de busca ativa, o Conselho Tutelar do Piauí tomou conhecimento do seu caso e de outras crianças que viviam em estado de negligência por parte dos familiares na área rural do estado. Foi transferida para um abrigo em Teresina e foi lá que os educadores do local desconfiaram de que ela estaria passando pela segunda gestação.

“Ela estava sem menstruar, arredia e com comportamentos suspeitos. Levamos na maternidade para fazer exame e foi constatado que ela está grávida de três meses. Foi um susto, um choque”, disse a conselheira tutelar que inicialmente acompanhou o caso, Renata Bezerra,  em reportagem a Folha de São Paulo. Além disso, a menina também havia tentado suicídio e estava sendo medicada com certa frequência quando essa segunda gestação veio à tona.

Em entrevista ao jornal O Globo, Renata detalhou o cenário socioeconômico em que Madalena vivia: na zona rural do Piauí, sob custódia de pais com pouca instrução formal e condições financeiras. “Quando o pai saía para buscar trabalho, a mãe, quando tinha que cuidar da menina e das outras crianças, as deixavam ao léu. Vivem à toa num lugar onde não são tratados com nenhum tipo de cuidado”, relata a conselheira tutelar, que também é pedagoga. Nesse caso, todo o envolvimento do pai de Madalena demonstra certa falta de comprometimento com o crescimento e a proteção dos filhos, o que gera uma sobrecarga para a mãe dessas crianças nos cuidados e acompanhamento deles. Mas, ainda em entrevista ao jornal O Globo, a conselheira tutelar relata que o pai autorizaria o aborto legal da menina, a mãe sempre defendeu que não.

Segundo Renata, o casal havia se separado e Madalena estava morando com o pai quando numa das idas dele em busca de trabalho ela foi pega à força por um vizinho enquanto estava caminhando pela rua e que esse era o contexto da nova gravidez da menina.

A partir da cobertura midiática que sucedeu à publicação da Folha de São Paulo sobre a segunda gestação de Madalena, sabe-se que um tio e um vizinho da menina foram detidos e passaram a ser investigados por estupro de vulnerável nessa segunda gestação – quando é consumada relação sexual com pessoas menores de 14 anos, independentemente do consentimento. Um fato controverso é o de que o exame de DNA comprova que este tio é pai do primeiro filho de Madalena, mas na época em que a menina engravidou pela primeira vez, um primo dela de 25 anos foi identificado como o agressor sexual da criança e após um tempo foi encontrado morto. Essas informações reforçam o alto nível de vulnerabilidade em que a Madalena se encontrava.

Embora podendo ser responsabilizada criminalmente pela negligência de seus filhos, os pais de Madalena oficialmente ainda respondem por ela e, novamente,  o aborto legal da menina não foi autorizado. A justificativa dessa negativa se resumiu a “aborto é crime.” A reportagem do jornal O Tempo relata que esse pai “afirmou ainda que gostaria de conhecer a neta e que só concordou com a decisão de colocá-la para adoção por não ter condições financeiras de criar a criança.”

Madalena não é um caso isolado na região onde viveu, na área rural do Piauí, reforça Renata em entrevista ao O Globo. “O caso dela ganhou repercussão, mas temos vários casos de abuso sexual em que o pai e a mãe são coniventes com a situação. Além dela, há um outro caso de uma menina de 13 anos, na mesma cidade, que já tem três filhos.” E foi esse o cenário em que Madalena se encontrava: alta vulnerabilidade social e normalização do abuso sexual infantil. 

Defensoria Pública e o interesse do feto

Esse caso deixa nítido o quanto a narrativa pró-vida dos conservadores religiosos e da extrema direita reforça a ameaça à vida de mulheres e meninas negras e pobres em todo o país, sobretudo nos locais mais afastados dos centros urbanos. 

Além da mentalidade conservadora e negligente de toda a rede de pessoas mais próximas a Madalena, um outro fator que aprofunda a gravidade deste caso foi a determinação da juíza Élfrida Costa Belleza, que esteve à frente do caso, da nomeação de uma defensora pública enquanto “defensora dos interesses do feto”. Essa é Uma personagem que só existe no projeto de lei 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, que transita pela Câmara Federal há mais de 15 anos, mas que não foi aprovado e, portanto, não poderia estar sendo executado nas políticas públicas. 

Na prática, o Estatuto do Nascituro considera a vida a partir da concepção, proibindo o aborto em todos casos. Mesmo em situação de estupro de vulnerável e violência sexual sistemática, como o caso desta menina de 12 anos, que engravidou e viveu a gestação completa duas vezes. O que configura um retrocesso na legislação sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos no Brasil.

Por determinação da juíza titular do caso, Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, a publicação de notícias sobre o processo foi proibida e não tivemos acesso ao nome do profissional que atuou em defesa do feto no caso.

É importante ressaltar também que crianças, adolescentes e os idosos são prioridade do Estado e devem ser protegidos por todos: Familiares, educadores e demais pessoas que convivam com essas pessoas no dia a dia. A nomeação de um curador para defender os interesses do feto não tem base legal na Constituição nem no Código Civil e na prática, a Defensoria Pública do Piauí atuou na contramão do asseguramento de diretos e deveres plenos das pessoas nascidas com vida que cada uma dessas legislações prevê.

O Aborto Legal de Madalena foi autorizado pela 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina, mas foi desautorizado pelo Tribunal de Justiça do Piauí a pedido da Defensoria Pública do Estado e da mãe da menina.

O caso expõe a rede de desproteção que é ativada para garantir que determinada interpretação sobre o início da vida seja validada institucionalmente. Além da negligência dos familiares e vizinhos, ainda existem juízes, advogados, defensores públicos, médicos, psicólogos e assistentes sociais que, no cargo institucional que ocupam, acabam por reforçar inverdades sobre as possibilidades de proteção da infância e adolescência.

Nesse caso, por exemplo, a negativa do acesso ao aborto desta menina de 12 anos inclui até o argumento de que a própria Madalena concordou em prosseguir com a gestação. Mas um dos relatos de Renata Bezerra, a primeira conselheira tutelar a acompanhar o caso, é do que a menina já havia tentado, inclusive, suicídio em decorrência dessa segunda gravidez.

Repercussão local, reação da sociedade civil e o movimento de mulheres negras no estado

Não eram somente os familiares da menina que demonstraram negligência no cuidado e remediação às violências sofridas por Madalena. A repercussão local sobre o caso apoiou a continuidade da gestação da menina de 12 anos, ancorada em ideologias fundamentalistas cristãs e misóginas. Sob alegação de que seriam as feministas que queriam que a criança fizesse aborto, a opinião pública decretou que negligenciar ainda mais o direito a infância de Madalena era a melhor solução para o caso. Quem conta isso é Halda Regina, coordenadora Geral do Instituto da Mulher Negra do Piauí – Ayabas.

A Ayabas integra a Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio e a Rede de Mulheres Negras do Nordeste, e esteve ativamente envolvida com este caso. Esse conjunto de organizações conseguiu reunir com o diretor da Maternidade Dona Evangelina Rosa, Dr. Francisco Macêdo, e com o então secretário de Saúde do Piauí, Antônio Neris Jr,. para conversar não só sobre esse caso de impedimento do aborto legal em decorrência de estupro de vulnerável, mas outros que também já foram noticiados anteriormente.

A Maternidade Dona Evangelina Rosa é a única do Piauí apta a realizar o aborto legal no estado. Por esse motivo, os casos que acontecem da capital ao interior piauiense são encaminhados para a equipe desta maternidade e, segundo relato de Halda, são frequentemente inviabilizados: “O que a gente sabe de conversinha (por relatos e meios não oficiais) é que todas a crianças que chegam e passam por lá, os próprios profissionais dessa área de abortamento tentam convencer as crianças, adolescentes e até os pais para que essas crianças não possam abortar”, conta Halda, que também é mestra em Educação.

Os encontros da Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio questionavam os gestores sobre o cumprimento do artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848/1940, que considera a legalidade do aborto quando a gravidez resulta de violência sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Em se tratando de gravidezes infantis, é importante ressaltar que essas meninas geralmente não têm sequer os órgãos amadurecidos o bastante para gerar outra criança com segurança. Sem sucesso, o foco agora é tentar conseguir fazer contato com os profissionais dos hospitais para conscientização da gravidade desses casos e a importância da denúncia formal e pública do que acontece na Maternidade Dona Evangelina Rosa.

“Nossa preocupação agora é essa. Porque todos os secretários, o novo secretário que entrou agora, a gente entrou em contato com ele também pra falar sobre isso. E é aquela coisa, a maternidade tá cumprindo o seu papel, em tese, e a gente não tem como ter a denúncia dos profissionais que estão lá porque eles não querem se comprometer. Eles falam o que tá acontecendo, mas não querem se comprometer de denunciar publicamente”, conta a ativista.

Em novembro de 2022, Halda teve a oportunidade de conhecer Madalena no abrigo em que ela vive. Convidada para realizar uma palestra sobre racismo e o Mês da Consciência Negra, Halda pode presenciar como a menina negra de pele clara se comportava, ainda grávida, em meio às demais crianças e adolescentes que também estavam sob custódia do Estado. Tímida e sempre por trás das pessoas. 

No abrigo, Madalena conta com a ajuda de outras meninas e adolescentes para cuidar de seu primeiro filho e resgatar um pouco de sua autoestima e adolescência.

Embora não seja o primeiro nem último caso de gravidez infantil recorrente no Piauí, pela repercussão na imprensa e pressão dos movimentos sociais, o caso de Madalena foi denunciado internacionalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a CIDH.

Segundo relatório divulgado pela Rede de Observatórios de Segurança, o Piauí, seguido pelo estado do Maranhão, é o estado do Nordeste que mais computou casos de violência contra crianças e adolescentes. Sendo o estupro a maior parte desses casos e as meninas as maiores vítimas. Além disso, a Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas (Semcaspi) de Teresina constatou que na capital piauiense houve um aumento em 53% de casos de violência sexual infantil. Embora sejam dados preocupantes, uma das interpretações é de que na verdade não tenha havido um aumento no número de casos, mas sim uma maior efetividade na ação dos  conselheiros tutelares e nas campanhas de conscientização sobre o tema. Conforme relatou o conselheiro tutelar Melquisedeque Fernandes para o portal O Dia.

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