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Violência obstétrica em Sergipe: Um problema silenciado

Desinformação, racismo, ausência de debate e corporativismo médico põem gestantes em situação de vulnerabilidade

Por Jô Pontes

Ilustração: Ani Ganzala

“Ele chegou com muita ignorância, fez um exame de toque muito brutal e foi me arrastando. Eu não estava com roupa nenhuma, só com um lençol por cima. Ele me pegou pelo braço e eu saí nua pelo corredor”. Esse foi o relato de uma mulher de 29 anos, que em agosto de 2019 deu entrada em trabalho de parto na Maternidade do Hospital Regional José Franco, no município de Nossa Senhora do Socorro, em Sergipe. Vamos chamá-la de Juliana*. Ela relata que sofreu violência obstétrica pré-parto do médico plantonista naquela madrugada na unidade de saúde.

A violência continuou após o parto: o médico costurou seus pontos sem aguardar o efeito da anestesia, Juliana conta que sentiu a mão do médico costurando os pontos e desmaiou de dor. “Na sala de parto, mandou eu subir na cama. Eu disse que não conseguia, porque já podia sentir a cabeça do meu filho saindo. Duas mulheres que estavam na sala vieram me ajudar”, acrescentou Juliana, afirmando que a criança foi retirada, mas a placenta continuou dentro.

Um Boletim de Ocorrência foi prestado na Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis do Município e foi feita denúncia à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/SE. A Secretaria de Estado de Saúde (SES), através da Fundação Hospitalar de Sergipe (FHS), emitiu nota informando que o médico foi suspenso por um período de 30 dias para averiguações.

A advogada da vítima informou que devido o atendimento que ela recebeu, Juliana não conseguia sentar ou ficar em pé, só andava com auxílio de outras pessoas, e só estava amamentando deitada, não podendo segurar a criança sozinha.

“Foi muita tortura na sala e eu gritando de desespero. Quando o bebê saiu, ele me deixou com as pernas penduradas no ferro (…) Meu filho nasceu 1h45, quando olhei para o relógio eram 2h10 e eu lá”, contou Juliana. Enquanto ela permanecia sozinha, de pernas abertas, num período de cerca de meia hora, sem receber nenhum tipo de assistência, uma moça da equipe de limpeza entrou no lugar e a ignorou, limpando a sala enquanto Juliana ficava na mesma posição aguardando o médico concluir o procedimento. 

Violência obstétrica em Sergipe

A pesquisa “Prevalência e tipos de violência obstétrica em maternidades públicas e privadas de Sergipe”, divulgada pela Revista Contemporânea, apresenta estudo que tipificou agressões em maternidades públicas e privadas de Sergipe, sendo incluídas mulheres que pariram no estado entre os anos de 2017 e 2022 – justamente o período da experiência traumática de Juliana. Na pesquisa, a violência obstétrica foi explicada a partir do relato das vítimas e classificadas em sete tipos: física, verbal, psicológica, sexual, social, negligência e uso indevido de técnicas e procedimentos. Foram 337 mulheres aptas a participar da pesquisa e a prevalência de violência obstétrica foi de 85,16%, sendo relatada em 95,53% das entrevistadas que foram atendidas no setor público e 73,42% no setor privado. A pesquisa também apresenta, de forma individualizada, que a maior parte das mulheres já sofreu até três tipos de violência obstétrica simultaneamente.

Estava em tramitação na Assembléia Legislativa de Sergipe, o Projeto de Lei (PL) 224/2019 que tratava do combate à violência obstétrica, assegurando às gestantes o direito ao parto humanizado nos estabelecimentos públicos de saúde no estado. Rose Fonseca, que integra a Rede de Mulheres Negras de Sergipe e é membra do Comitê Estadual para Redução de Mortalidade Materna, Infantil e Neonatal (CEPMMI/SE), comentou sobre o caso de Juliana e alertou para a importância de pautar situações como esta no CEPMMI. Ela também observou sobre a necessidade de um movimento mais específico para conscientização e redução da violência obstétrica no estado. “Outra ponte é a provocação ao próprio Comitê de Redução de Mortalidade Materna, que precisa estar integrado com a academia e militância, para a elaboração de ações assertivas”, pontuou. 

Silenciamento e invisibilidade

Na tese Silenciamento e Invisibilidade: Determinantes na Construção do Termo Violência Obstétrica no Brasil e a Relação com o Serviço Social, de Juliane Barbosa Tavares, 2022, ela pontua que recentemente o então Ministério da Saúde, numa articulação com o Conselho Federal de Medicina, publicou um despacho que orientava a exclusão do termo “violência obstétrica” de documentos oficiais com o argumento que o termo é inapropriado e que os profissionais “não tem intencionalidade de violentar gestantes e puérperas no momento do pré parto, parto e puerpério”.

Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2010, “Mulheres Brasileiras e Gênero nos espaços públicos e privados” mostra que 25% das mulheres brasileiras que são mães, sofreram algum tipo de agressão na fase do pré-natal ou durante o parto. O estudo também mostra que 27% das mulheres atendidas na rede pública e 17% das atendidas na rede privada afirmam que já sofreram essa violência, e 17%.

Participação política pelo fim das violências e promoção da Justiça Reprodutiva em Sergipe

Rose Fonseca acredita, que em seu estado, há muito o que se alinhar entre a representatividade das mulheres negras e os espaços políticos. “Uma via possível de ser permeada são os Conselhos de Saúde, da Infância e da Mulher, por exemplo, para serem de fato pontes de discussão de políticas públicas efetivas. A sociedade civil tem que pleitear melhor esses espaços e se fortalecer neles”.

Ela também aponta que a violência obstétrica está diretamente ligada ao racismo. “Mulheres negras ainda são vistas como mais resistentes à dor, esse é um ponto horroroso da herança colonial que persiste em hospitais públicos”, disse. Lembrando que a precarização do sistema de saúde pública deixa a sociedade ainda mais vulnerável. “Estamos em insegurança nos hospitais públicos pelo machismo estrutural, pela ideia da classe que impera entre médicos e no seu pensamento corporativista que ainda sustenta uma crença de relação vertical entre os usuários, ausência de atualização, aprimoramento e estudos de novas e boas práticas”, acrescentando que existe pouca fiscalização e investimentos que precariza o SUS. 

Rose avalia como estratégia de enfrentamento às diversas formas de violências contra as mulheres: “Ocupar todos os espaços, ocupar a política, ocupar os conselhos como sociedade civil”. Ela aponta para a importância de se unir em coletivo, em rede, utilizar as mídias possíveis, no intuito de sensibilizar e popularizar reflexões de que mulheres e pessoas que gestam têm direito a um parto com dignidade, autonomia, segurança e liberdade.

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