Nós por nós

O desserviço da grande mídia potiguar aos Direitos Sexuais e Reprodutivos no estado

Veículos de mídia demonstram como a falta de aprofundamento das notícias garante a perpetuação de desinformação e barra o acesso a direitos já garantidos por lei

Por Eduarda Nunes

Ilustração: Ani Ganzala

O Nós por Nós – Observatório de Direitos Sexuais e Reprodutivos do Nordeste organizou um mapeamento de notícias sobre os Direitos Sexuais e Reprodutivos nos nove estados do Nordeste, nos últimos seis anos. No levantamento do Rio Grande do Norte foi encontrado ao menos uma notícia por ano de feto encontrado em estado de óbito em local público. Situações que foram advindas de um caso de aborto desesperado e inseguro, e com o material genético descartado de forma igualmente desesperada e insegura, mas que, na mídia, poderia gerar um debate que fosse além dos parâmetros conservadores, moralistas e cristãos. Em todas as notícias encontradas sobre estes casos, os veículos que relataram os fatos se ativeram ao descarte, desperdiçando a oportunidade de expandir o debate sobre os diversos aspectos da Justiça Reprodutiva.

Em 2018, o portal G1 RN noticiou a presença de um feto sem vida na estação de transbordo de resíduos sólidos em Cidade Nova, na capital potiguar. Em uma matéria curta, é informado que alguns catadores de materiais recicláveis que encontraram o feto, e o fato foi verificado pela Urbana, companhia de limpeza. Após a constatação de que era mesmo um feto descartado, a polícia foi acionada. O prosseguimento das investigações ficou com a Polícia Militar e Civil e o Instituto Técnico-Científico de Perícia (ITEP). Em 2019, na mesma estação de transbordo de resíduos sólidos, os catadores encontraram um novo feto descartado entre o lixo. O mesmo procedimento do ano anterior foi realizado.

Em 2020, também foi noticiado pelo portal G1 RN, um novo caso de feto encontrado na estação de tratamento de esgoto de um condomínio de apartamentos na região metropolitana de Natal. Encontrado pelo zelador do condomínio, o caso foi encaminhado para a Divisão Especializada em Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) e a matéria foi encerrada sem conclusões. Tudo ainda seria investigado pelos órgãos competentes.

Em 2021, a estação de transbordo de resíduos sólidos em Cidade Nova torna a ser palco de nova descoberta de feto descartado. Em 2022, o feto encontrado estava em um condomínio de apartamentos em Natal, capital potiguar. Diferentemente dos outros casos que haviam sido noticiados anteriormente, o casal responsável pelo descarte foi rapidamente encontrado: um homem de 27 anos e uma mulher de 25 utilizaram remédios abortivos para encerrar uma gravidez indesejada. As investigações apontaram ainda que uma terceira pessoa envolvida no caso foi ouvida e liberada em seguida. O casal foi preso.

Em 2023 dois casos foram noticiados. Mais um caso de descarte de feto aconteceu na estação de transbordo de resíduos sólidos de Cidade Nova, em Natal. Dessa vez foi encontrado um feto de aproximadamente oito meses e estava congelado. A polícia militar não conseguiu precisar se a sacola com o feto foi deixada na estação ou se foi transportada pelo caminhão do lixo. A matéria é encerrada sem conclusões.

Há quatro horas da capital potiguar, em Mossoró, no mesmo ano, outro feto foi encontrado morto em um ônibus de viagem na BR- 304. Num trajeto entre as cidades de Caruaru (Pernambuco) e Fortaleza (Ceará), uma das passageiras identificou sangue escorrendo pela escada do ônibus e chamou a atenção. Uma enfermeira que também era passageira reconheceu que tinha um feto em estado de óbito em cima da poltrona. A polícia foi acionada, e foi levantada a suspeita de que um casal que desceu no meio do caminho teria deixado o feto no local. Entretanto, o delegado que ficou responsável pelas investigações, Paulo Torres, declarou que ainda não dava para afirmar que se tratava de um crime: “Nós ainda vamos esclarecer, porque pode ter sido de forma espontânea ou um aborto”. A matéria termina, assim como as outras, com as investigações em aberto.

Todas essas matérias encontradas na apuração do projeto apresentam a mesma estrutura: relato simples do acontecido, alguns encaminhamentos sobre o início das investigações e diferentes formas de direcionar o caso para a criminalização. Todas foram veiculadas por veículos de Hard News, ou seja, de notícias quentes, cotidianas, rápidas, com pouco aprofundamento e muito apelo escatológico e sensacionalista, ancoradas no conservadorismo para estruturar sua relevância; o que demonstra como o jornalismo, muitas vezes, não cumpre o papel de informar e estimular o pensamento crítico do espectador. Reforçando, assim, valores que impedem a qualificação do debate público sobre o acesso a direitos. E isso não é uma situação que se limita ao estado do Rio Grande do Norte, mas uma questão séria de toda imprensa brasileira.

 Direitos Sexuais e Reprodutivos e acesso ao Aborto Legal no Rio Grande do Norte

Legalmente, o aborto é permitido em três casos no Brasil: em casos de estupro, anencefalia do feto e risco de vida para a pessoa gestante. No Rio Grande do Norte, segundo dados do Ministério da Saúde, 279 mulheres tiveram acesso a esse direito entre os anos de 2018 e 2022. Ao todo, são cinco hospitais e maternidades de referências que podem ser acessadas para realização do aborto legal. São elas a Maternidade Divino Amor (Parnamirim), o Hospital e Maternidade Almeida Castro (Mossoró), a Maternidade Escola Januário Cicco (Natal), o Hospital Dr José Pedro Bezerra (Natal) e o Hospital Universitário Ana Bezerra (Santa Cruz).

A antropóloga Cristina Diógenes, que é coordenadora de Saúde e Cuidados do Grupo Afirmativo de Mulheres Independentes (GAMI) e pesquisadora na área de sociologia da saúde, conta que o Rio Grande do Norte, por ser um estado muito conservador, apresenta dificuldades de implementação até dos direitos sexuais e reprodutivos garantidos por lei. “Isso acontece, em geral, por falta de preparação dos médicos e equipe de saúde”. Ela comenta, ainda, que quanto mais o paciente se afasta do padrão cisheteronormativo, mais dificuldades são impostas aos cuidados com a saúde. “No caso das mulheres lésbicas, por exemplo, a gente não tem a garantia de acesso a um atendimento ginecológico especializado, com equipamento adequado para um preventivo, por exemplo.”

Cristina compartilhou que durante a escrita de sua dissertação foi possível constatar como o sistema de saúde no Rio Grande do Norte dificulta atendimentos que poderiam ser simplificados. Pesquisando sobre mulheres negras que fazem o tratamento de Artrite Reumatoide, uma doença crônica que atinge as articulações, ela percebeu o quanto que aos procedimentos de média e alta complexidade são impostos caminhos mais difíceis a quem precisa do atendimento. Isso porque uma quantidade significativa desses atendimentos é feita no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (HUOL), que fica em Natal. “Então, se a gente for pensar isso num nível mais amplo, dá pra compreender a dificuldade dessas mulheres. As que eu entrevistei saíam de casa às 2 ou 3 horas da manhã de casa, pra pegar o carro da prefeitura, pra esse carro chegar no HUOL, conseguir o atendimento. Sendo que a ficha antes era distribuída mensalmente e depois passou a ser três em três meses”, isso tanto para o caso de doenças crônicas como consultas ginecológicas ou outras especialidades que eram encaminhadas a partir do atendimento inicial nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

Em se tratando do caso de aborto legal, o acesso torna-se ainda mais dificultoso pelo estigma e conservadorismo que ronda a pauta. “O sistema de saúde em geral aqui no Rio Grande do Norte é deficitário, então, se a gente pensar em Direitos Sexuais e Reprodutivos, a gente vai ter um gargalo maior ainda”, afirma a antropóloga.

A mídia, segundo ela, além de retratar pouco as questões de Direitos Sexuais e Reprodutivos no estado, ainda trata de modo deficitário. Se atém a falar sobre aborto legal e não problematiza, por exemplo, dados que indicam que em 2020 o estado só realizou 9 procedimentos de aborto legal, sendo que nesse mesmo ano, de janeiro a junho, cerca de 1400 casos de estupro haviam sido registrados: “A gente tem uma série de criminalizações que vão sendo normalizadas para a mulher e a mídia reforça”.

Construindo o GAMI e outros movimentos feministas pela garantia de direitos para mulheres negras e LBT no Rio Grande do Norte, Cristina relata a falta de interesse dos veículos de mídia em cobrir e pautar as discussões que os grupos estimulam dentro e fora da capital potiguar. Além disso, a pesquisadora elenca a falta de sucesso na oferta de Educação do estado mais um ponto a ser considerado, porque “quando a gente tem um nível de Educação tão baixo, fica difícil falar de acesso a outros direitos”.

Em 2021 o estado atingiu a pior nota do país no Ensino Médio Público da rede estadual. Cristina correlaciona o quanto que a articulação do desinteresse da mídia nas pautas dos movimentos feministas com a falta de investimento na Educação fortalece o caráter conservador das instituições, penalizando, assim, muitas mulheres que precisam acessar direitos básicos e que já são previstos legalmente.

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