No Brasil, onde o racismo institucional estrutura o sistema de saúde, o cuidado promovido pelas parteiras representa uma verdadeira contraofensiva à política de genocídio
No dia 5 de maio celebra-se o Dia Internacional das Parteiras, uma data que marca o reconhecimento simbólico da importância dessas mulheres que, por gerações, sustentam a vida em comunidades onde o Estado pouco ou nada atua. No Brasil, essa data carrega um peso ainda maior, já que as parteiras tradicionais são, em sua maioria, mulheres negras, moradoras de territórios quilombolas, indígenas, rurais e periféricos. Elas são mestras em práticas de cuidado que articulam saberes corporais, espirituais, comunitários e ecológicos, forjadas fora da lógica biomédica ocidental.
O reconhecimento oficial das parteiras como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), ocorrido apenas em 2024, evidencia o quanto esses saberes foram historicamente desvalorizados. Isso não é mero descaso: é o reflexo de um projeto colonial e racista que, desde a escravização, desqualificou as práticas negras de cuidado e saúde, ao mesmo tempo que impôs a hegemonia do modelo hospitalar, medicalizado e hierarquizado. As políticas públicas que criminalizaram ou marginalizaram a atuação das parteiras contribuíram para o apagamento de uma ciência baseada na experiência coletiva e na transmissão intergeracional.
O Ministério da Saúde estima que existam 60 mil parteiras tradicionais no Brasil, assistindo aproximadamente a 450 mil partos por ano. Elas são responsáveis por 20% dos nascimentos na área rural, incluindo aldeias e comunidades ribeirinhas. Esse percentual chega ao dobro nas regiões Amazônia e Nordeste. Ainda assim, as parteiras resistem. E sua resistência não é apenas prática, mas também epistemológica: elas mantêm vivas outras formas de conhecimento sobre o corpo, o nascimento e a vida. Ao acompanharem gestações com escuta, presença e respeito, desafiam a lógica da intervenção mecânica e reafirmam a potência do corpo feminino. Em seus modos de atuar, mostram que nem tudo precisa de hospital, corte ou remédio: o que muitas vezes sustenta a vida é o vínculo humano, o toque certo e a sabedoria ancestral.
A importância das parteiras ganha ainda mais centralidade quando pensamos na realidade das mulheres negras no Brasil. Em um país onde o racismo institucional estrutura o sistema de saúde, o cuidado promovido por essas mulheres representa uma verdadeira contraofensiva à uma política de morte. O número alarmante de mortes maternas entre mulheres negras, os inúmeros casos de violência obstétrica, o desprezo à dor negra e a recusa em respeitar seus corpos são apenas algumas faces de um modelo que continua operando pela exclusão.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 85% dos partos poderiam ocorrer sem qualquer intervenção médica. No entanto, no Brasil, 55% dos nascimentos ainda são realizados por cesariana, a segunda maior taxa do mundo, atrás apenas da República Dominicana. Essa realidade escancara como o parto se tornou um evento controlado e lucrativo, transformando os corpos das mulheres, especialmente das mulheres negras, em objetos de manipulação técnica e financeira.
Frente a isso, desmedicalizar é resistir. É recusar a lógica da urgência, do corte, da anestesia e do controle. É entender que o nascimento pode e deve ser vivido como um processo humano, potente e digno. E é nesse lugar que o saber das parteiras se fortalece: como alternativa concreta e afetiva a um sistema que continua produzindo dor e apagamento.
REPARAÇÃO, BEM VIVER E SAÚDE
A atuação das parteiras também deve ser compreendida dentro da luta coletiva das mulheres negras no Brasil. Em 2015, a Marcha das Mulheres Negras reuniu mais de 100 mil mulheres em Brasília exigindo o fim do racismo, da violência e por um projeto de Bem Viver. Em 2025, dez anos depois, a Marcha retorna às ruas com ainda mais força, ampliando o grito por reparação histórica. Dentro dessa mobilização, o reconhecimento das parteiras também é um debate importante. Cuidar da vida negra desde o nascimento é uma resposta direta à lógica da morte imposta historicamente pelo Estado.
O projeto de Bem Viver também passa pelo direito ao cuidado respeitoso, à autonomia corporal e à proteção dos saberes ancestrais. As parteiras estão no coração desse projeto. Elas simbolizam a possibilidade de um futuro que não se baseia na exclusão, mas na valorização das memórias, dos afetos e das práticas comunitárias.
Proteger os saberes das parteiras é proteger o futuro. É garantir que meninas e mulheres negras tenham direito à vida plena, desde a gestação. E é também fazer justiça às muitas que foram silenciadas, perseguidas ou esquecidas, e às muitas que ainda hoje sustentam o nascimento com coragem, dignidade e sabedoria.