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A Síndrome Congênita do Zika Vírus em Pernambuco e o fortalecimento coletivo de mulheres negras, pobres e periféricas, mães de crianças com microcefalia

No estado, mães de crianças acometidas pela tríplice epidemia da Zika, Dengue e Chikungunya se unem pelo futuro de seus filhos e pelo exercício de suas liberdades

Por Eduarda Nunes

Ilustração: Ani Ganzala

Entre 2015 e 2017 o Brasil viveu um momento de surto de crianças nascendo com microcefalia. A região Nordeste foi a principal afetada pela epidemia, sendo Pernambuco o estado com o maior número de casos registrados. Foi em Pernambuco também, na Fiocruz, onde aconteceu as primeiras descobertas sobre as possíveis causas desse acontecimento, que foi relacionado ao mosquito do Aedes aegpyti, que causa dengue, febre amarela e, como descoberto, porta também o Zika Vírus.

Em 2015 Pernambuco registrou 268 nascimentos de crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus, número muito superior à contagem dos cinco anos anteriores, que eram de nove casos por ano. Até o fim do período em que o Brasil estava declaradamente em situação de Emergência de Saúde Pública pelas doenças transmitidas pelo aedes aegpyti, em 2017, a cobertura midiática sobre esse assunto era constante. A chamada notícia quente, que ninguém podia deixar de cobrir e caçar novas informações para divulgar.

Ainda sobre o estado de Pernambuco, em 2015, foi lá que surgiu a primeira associação de mães de crianças com microcefalia, a União de Mães de Anjo. Presidente e uma das lideranças do grupo desde a criação, Germana Soares conta que a cobertura midiática que aconteceu no início do surto ajudou a visibilizar as necessidades dos recém-nascidos com microcefalia e também as de outras crianças e pessoas com outras deficiências. Entretanto, ela conta, essa visibilidade não foi suficiente para que as famílias atípicas que estavam surgindo naquele momento recebessem o investimento suficiente para lidar com as consequências do surto.

Germana é uma mulher negra, empreendedora de responsabilidade social e uma importante articuladora política pela garantia dos direitos das famílias de crianças que nasceram com microcefalia durante esse período do surto. Hoje ela tem três filhos, Guilherme, Geovanna e Gabriella, e foi com seu primogênito que sua jornada ativista de mãe atípica se iniciou.

No primeiro momento, enquanto as mídias tradicionais ainda tinham interesse nessas crianças, as mães, por suas vezes, ainda não tinham total dimensão dos percalços que viriam a ser enfrentados a partir dali. “A gente era leiga, a gente não sabia o universo que tava entrando e além de lutar pelos direitos das crianças, a gente dividia essa missão com várias outras coisas. Primeiro a gente precisava identificar quais direitos eram das crianças, a gente não sabia”.

Hoje, depois do apagar dos holofotes midiáticos, são as mães quem, substancialmente, seguem demandando e fazendo articulações políticas para garantir que essas crianças e seus responsáveis sejam assegurados no que for possível pelo Estado. Germana relata o quanto a cobertura midiática foi importante, mas também o quanto fez falta para garantia dos passos seguintes dessas famílias: “Depois que a mídia parou de falar, essas crianças ficaram esquecidas. Então o sentimento de impotência, invisibilidade e de abandono imperou sobre essas pessoas, sobre essas famílias”.

Mesmo com essa queda de visibilidade e, consequentemente, de apoios, as Mães de Anjos não cessaram. Foi nessa caminhada que descobriram a potência coletiva que tinham e também o acalanto que é poder dar as mãos com outras mães que entendem e passam pelas mesmas dificuldades. Muitas precisaram largar os empregos para se dedicarem aos cuidados que as crianças demandam e, neste processo, seguiram buscando que o Estado se responsabilizasse, indenizasse e prestasse a assistência necessária às famílias.

Em articulação, essas mulheres passaram a receber pelo SUS o Levetiracetam, medicamento anticonvulsivo, e também conquistaram a priorização nos cadastros de famílias a serem contempladas pelo Programa Minha Casa Minha Vida, uma discussão que foi estimulada pelo Projeto de Lei 4409 de 2019.

Também em 2019 foi instituída a Medida Provisória (MP) 894, que dá direito a uma pensão vitalícia de um salário mínimo para crianças nascidas com SCZV entre os anos de 2015 e 2018. As organizações de famílias afetadas pela síndrome apontaram falhas na MP, que submetia a garantia deste recurso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que por sua vez, tem como critério a renda familiar de 1/4 do salário mínimo por pessoa. Em outras palavras, a pensão não se configurava exatamente como uma verba indenizatória, mas a troca de um benefício por outro.

Em uma matéria do G1 Pernambuco, é possível ter acesso a depoimentos como o de Gemima Pessoa, que deixou de trabalhar em seu ofício de professora para cuidar de sua filha Luana e que, segundo a MP, também não teria direito a pensão por conta valor do salário do marido que tornava a renda per capita maior do que R$247.

“A realidade está estampada na nossa cor de pele”

Após 2016, primeiro ano da tríplice epidemia, ainda não era possível obter dados oficiais do Ministério da Saúde sobre as crianças que nasceram portando a Síndrome Congênita do Zika Vírus e o perfil socioeconômico e racial das mães dessas crianças. Isso porque quando foi criada a notificação não foi levada em consideração alguns critérios, entre eles, o de raça/cor, que é uma das resoluções do Estatuto da Igualdade Racial aprovado em 2011. Em Pernambuco, a partir de dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social em 2016, foi possível atestar que: aproximadamente 57% das famílias afetadas pelo Zika Vírus estavam vinculadas ao Cadastro Único de benefícios sociais no estado; 70% das mães dessas crianças tinham entre 14 e 29 anos; e 77% eram negras.

Atualmente, das 431 famílias que são acolhidas e acompanhadas pela UMA, 85% são chefiadas por mulheres negras, pobres e periféricas. Segundo Germana, são mulheres que vivem ou viviam em situação de extrema vulnerabilidade, sem saneamento básico e outros serviços de saúde coletiva. “O surto atingiu essas mulheres, que são marginalizadas e vulneráveis, porque elas não tinham dinheiro para pegar um avião e passar o resto da gravidez no exterior ou de ficar lá no 20º andar de um apartamento luxuoso. Ou sequer dinheiro para comprar repelente”. A fala da presidente da Associação faz menção ap período de descoberta que as grávidas picadas pelo mosquito estavam parindo crianças com microcefalia.

Uma pesquisa realizada pela Fiocruz, em 2018, descreveu também como a desigualdade de gênero é marcada nas famílias dessas crianças. Seguindo a expectativa que é despejada sobre as mulheres, elas ficam encarregadas dos cuidados e, muitas vezes, de abdicar de suas vidas profissionais – e às vezes até pessoais – para se dedicar ao filho. Já os homens, quando não abandonam a família, ficam exclusivamente na função provedora. Mulheres que são mães solo ficam nas duas funções.

A preocupação com a saúde é uma constante devido a rede de assistência pública fragmentada e insuficiente para essas famílias. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos também foram citados pelas mulheres de Pernambuco e Rio de Janeiro que participaram da pesquisa. Os sentimentos de pânico e medo de uma gravidez não planejada nessa época foram citados, além do relato de falta de conhecimento sobre métodos contraceptivos, a possibilidade de transmissão do Zika Vírus por vias sexuais e a ausência dos homens no planejamento reprodutivo.

A luta também é por políticas públicas efetivas de prevenção ao Aedes aegypti

Ao mesmo passo que as mães de anjos incidem na cobrança por políticas públicas que acolham e viabilizem um maior bem estar para seus filhos e para elas mesmas na função de cuidadoras, organizações como o Grupo Curumim atuam fortemente dentro e fora do estado de Pernambuco para cobrar efetividade na prevenção a contaminação pelo mosquito Aedes aegypti.

Daniele Braz é economista e também ativista do Grupo Curumim, organização que tem como principais eixos de atuação o Direito das Mulheres, das Crianças e Adolescentes a partir da garantia da Saúde e do acesso aos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Em entrevista, Daniele relata a experiência da escuta realizada com mulheres no município de Goiana, litoral norte de Pernambuco.

Goiana foi uma das cidades pernambucanas com mais notificações de crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Segundo Daniele, isso ocorre pelo nível muito baixo de saneamento básico, que leva as famílias a ficarem mais expostas ao mosquito. “A gente tem uma atuação para prevenir que as mulheres tenham filhos com microcefalia, tanto fazendo incidência nas políticas públicas como fazendo incidência junto às comunidades afetadas”, conta.

Além da Síndrome Congênita do Zika Vírus, as demais doenças provocadas pelo Aedes aegypti também são causas de outras dificuldades para essas famílias. Sobretudo a Chikungunya, que muitas mulheres sofrem por muito tempo com as sequelas da doença, sobretudo se chegam a fase gravídica ou de envelhecimento. Além de afetar a libido e os Direitos Sexuais e Reprodutivos dessas mulheres, Daniele conta que essas sequelas também afetaram o mundo do trabalho, com destaque as pescadoras, que precisaram deixar de trabalhar após a doença.

Essa experiência delineou o quanto a injustiça reprodutiva está relacionada à falta de qualidade de vida, que por sua vez, expõe mais mulheres negras às condições ambientais e em um contexto de mudanças climáticas. “A gente precisa que os serviços públicos em todas as esferas assumam suas responsabilidades para que essas mulheres não sofram com a baixa qualidade de vida em suas casas e que tenham as condições de viver uma vida sem o risco de ter uma doença decorrente da falta de políticas públicas implementadas, que é a causa do saneamento básico, do lixo e outros fatores que causam a tríplice epidemia”, afirma a economista.

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