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Disputas políticas interferem na ampliação do acesso ao planejamento familiar em Alagoas

Discussão sobre a competência de profissionais não médicos para a inserção do Dispositivo Intrauterino (DIU) demonstra maior preocupação com hierarquias profissionais do que na acessibilidade a essa política de planejamento familiar

Por Eduarda Nunes

Ilustração: Ani Ganzala

Em agosto de 2019, em Penedo (AL), uma jovem de 23 anos fez a inserção do Dispositivo Intra-Uterino (DIU) com um enfermeiro e pouco tempo depois sofreu um aborto. Mesmo com a realização de todos os exames que são necessários para prosseguir com o procedimento, incluindo exame de gravidez, não foi possível identificar a gestação.

Assim que o caso se tornou de conhecimento do Conselho Regional de Medicina do estado (CREMAL), a instituição tornou o caso público junto a uma série de ações com base na Lei do Ato Médico (Lei 12.824/2013) – que visaram proibir a realização do procedimento por enfermeiros, considerando-o um procedimento invasivo e em órgão interno. A movimentação chegou ao ponto do procedimento se tornar proibido em todo o estado de Alagoas para enfermeiros e outros profissionais da saúde.

Em julho do mesmo ano, as prefeituras das cidades de Penedo e Arapiraca, também em Alagoas, tinham oficializado uma parceria com o Conselho Regional de Enfermagem de Alagoas (COREN-AL) para a promoção de um curso de capacitação para enfermeiros da atenção básica desses municípios. Intitulado de “Curso de Consulta de Enfermagem Ginecológica com ênfase na saúde sexual e reprodutiva”, o objetivo foi a capacitação de mais profissionais para realizar intervenções ginecológicas simples, como o exame do Papanicolau e a inserção do DIU, e, assim, ampliar o acesso das mulheres a esses serviços. Uma iniciativa que tornou o estado de Alagoas pioneiro não só na questão de planejamento reprodutivo, mas também na formação crítica de profissionais sobre questões ligadas à sexualidade, violências relacionadas às questões de direitos sexuais e reprodutivos, infecções sexualmente transmissíveis e outros pontos de atenção que permitem um olhar mais integral e integrada para a saúde sexual e reprodutiva das pessoas, sobretudo das mulheres.

Na ocasião do aborto na mulher de 23 anos, o COREN-AL lançou uma nota afirmando, dentre outras coisas, que o erro não estava ligado estritamente ao fato de ser um profissional de enfermagem e reforçou o quanto a realização desse tipo de procedimento por enfermeiras e enfermeios estava ancorado em recomendações do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde.

Em meio a essa disputa entre médicos e enfermeiros, fundamentalistas religiosos também aproveitaram a pouca disposição de informação sobre o Dispositivo Intrauterino para propagação de notícias falsas a respeito. Uma série de outdoors afirmando que o DIU era abortivo tomou conta de Maceió, capital alagoana, em novembro de 2019. Os materiais faziam alusão ao caso dessa mulher de 23 anos e à crença cristã de que a vida começa a partir da concepção, ou seja, do encontro do óvulo com o espermatozóide.

Ao mesmo tempo em que gerou toda essa movimentação sobre o Dispositivo Intra-Uterino, até hoje pouco se sabe sobre como esse caso foi prosseguido. Sobre a assistência que a jovem recebeu após o aborto, se houve ou não indenização. O que demonstra uma despreocupação particular com o caso e um interesse maior no próprio DIU, um instrumento que tem garantido direitos sexuais e reprodutivos para milhares de mulheres, homens e famílias em todo o País.

Ao fim de 2019, tanto a Justiça Federal de Alagoas como o próprio Ministério da Saúde corroboram com a argumentação de que o procedimento de inserção do DIU na rede pública seja um procedimento de exclusiva competência dos profissionais da Medicina. O Curso de Consulta de Enfermagem Ginecológica nas cidades de Penedo e Arapiraca foram pausados até a liberação em caráter liminar para o retorno dos procedimentos. Nesse caso, somente em Arapiraca os atendimentos foram retomados porque o município de Penedo não se pronunciou no processo.

No início de 2022 o Conselho Federal de Enfermagem lançou a resolução 690/2022, que normatiza a função do profissional de Enfermagem no planejamento familiar e reprodutivo.  Em junho de 2023 o Ministério da Saúde reviu a nota técnica que proibia enfermeiros de realizarem a inserção do DIU e tornou novamente recomendável que esses profissionais executem esse tipo de procedimento. Desse modo, viabilizando o fortalecimento das ações de planejamento familiar nos estados e municípios.

Segundo a coordenadora do projeto de capacitação dos enfermeiros em consulta de enfermagem com ênfase na saúde sexual e reprodutiva, Danyelly Costa, com a retomada e ampliação dessas formações, o número de mulheres que tiveram acesso ao Dispositivo Intra-Uterino aumentou significativamente. Danyelly comenta que em 2019 foram realizadas 105 inserções pelo Sistema Único de Saúde em Alagoas, e depois que o profissional enfermeiro entrou no cenário, os indicadores de saúde só melhoraram. “Hoje a gente tem mais de 5 mil mulheres já com DIU no estado. Isso é um dado muito importante porque são mulheres, homens e famílias que tiveram acesso ao método contraceptivo disponível no SUS garantido pelo profissional enfermeiro”, afirma.

O projeto foi ampliado pelo Cofen para outras cidades alagoanas, mas também para outros estados como Roraima, Rondônia e Amazônia. Danyelly também coordena a expansão do projeto e afirma que atualmente o protocolo de inserção do DIU ficou mais seguro e mais acessível após todo o embate político que se deu em torno do procedimento de inserção e a postura dos órgãos de Saúde responsáveis pela mediação da situação.

 A política de Planejamento Familiar na Saúde Básica

O estado de Alagoas foi selecionado para ser o piloto de um projeto de capacitação fruto de uma parceria com o COFEN para tentar diminuir e zerar a fila para inserção do DIU, como também os índices de gravidezes indesejadas e mortalidade neonatal.

Ainda segundo a nota divulgada pelo COREN-AL, em 2019, após o caso de aborto em decorrência do procedimento, de 2015 a 2018 tinham sido realizados 126 inserções de DIU segundo o Sistema de Informação Ambulatorial do Datasus (SIA). Sendo 0, 05, 16 e 105, o número de procedimentos realizados em cada um dos anos, respectivamente, e uma lista de espera que excedia as 400 usuárias em 2019.

Embora sejam políticas públicas ofertadas pela rede básica de saúde, o planejamento reprodutivo e familiar não está acessível para boa parte dos brasileiros. A pesquisadora Emanuelle Goes afirma que “para que o planejamento reprodutivo alcance todas as pessoas é preciso que aconteça o que nunca aconteceu: que seja ofertada de forma universal, contínua, com menos burocracia, sem barreiras, sobretudo relacionadas a estigmas e discriminações.”

Enfermeira por formação e doutora em Saúde Coletiva, Emanuelle conta que pelo fato dessa política não conseguir ser implementada de maneira contínua, muitas mulheres são impossibilitadas de acessar seu direito de escolha de ter ou não filhos e quantos ter. Isso porque “a mulher é obrigada a mudar de método pela falta do método que usava no mês anterior. Essa descontinuidade e falta de alinhamento com a política de planejamento reprodutivo fazem com o que a política não seja efetivada na ponta, e não dê conta do que se propõe e defende”. Emanuelle comenta ainda que as questões para falta de êxito da política são diversas: “Desde uma má gestão a uma gestão que não se preocupa com a garantia desse direito, com os métodos, com a informação da saúde reprodutiva”, avalia.

Em se tratando do episódio que aconteceu em Alagoas, Danyelly Costa, que também é enfermeira e é uma das responsáveis pela continuidade e ampliação do curso formativo para que os enfermeiros possam ser capacitados em consultas ginecológicas, relata que o que percebe é que essa imposição de dificuldades nos acessos a métodos de planejamento familiar e reprodutivo diz sobre uma questão de reserva de mercado: “por muitas vezes as mulheres saíam dos seus municípios, pegavam dinheiro emprestado e iam num médico num município vizinho, que custa R$1500, R$2000 reais. Se esse procedimento está no SUS, ela não deveria mais ter que colocar no privado.”

O Dispositivo Intra-Uterino foi inventado em 1929 pelo médico alemão Ernst Gräfenberg e era acompanhado pela fama de provocar infecções ginecológicas, aborto e câncer. Suspeitas que foram totalmente descartadas pela ciência, mas que ainda encontram fertilidade entre negacionistas e fundamentalistas ainda hoje. E que, embora seja um método antigo e um dos mais seguros do mundo, com uma taxa de falha inferior a 1%, ainda parece um mistério ou uma novidade para muita gente.

“O DIU é um método disponibilizado há mais de 20 anos. A gente tá em 2023 como se tivesse discutindo a roda e, na verdade, a roda já foi inventada há muitos anos. O que faltava era a liga, o profissional capacitado para pegar esse método e garantir para quem de fato precisa”, relata Danyelly, que entende que os enfermeiros e enfermeiras são peças muito importantes para que mais mulheres, homens e famílias possam ter acesso aos seus Direitos Sexuais e Reprodutivos, seja através da inserção do DIU ou de outros métodos e procedimentos que garantam seu direito de escolha quando o assunto for seu próprio planejamento reprodutivo.

No SUS, é possível ter acesso ao DIU de cobre, que tem duração máxima de 10 anos, gratuitamente. Mas além deste, existem outros tipos que têm menor tempo de duração e que podem ser acessados pela rede privada, como o de prata, o Mirena e o Kyleena. Esses últimos fazem parte da categoria de DIUs hormonais, ou seja, que além de provocar uma inflamação no tecido que reveste o útero e impede que os espermatozóides fecundem os óvulos, também liberam hormônios e que podem pausar a menstruação da paciente. Uma série de exames ginecológicos e laboratoriais são necessários para certificar que não existe nenhuma contraindicação para a inserção do dispositivo e que ele está compatível com o estilo de vida e histórico de saúde.

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