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Esterilização forçada de mulheres negras ainda persiste no Nordeste do Brasil

Na Sertão da Paraíba, mulher foi laqueada sem seu consentimento

Por Jô Pontes

Ilustração: Ani Ganzala

Josiane* é moradora do município de Patos, a 266 km de João Pessoa, no sertão da Paraíba. Ela passou por nove meses de preparo e expectativa para a chegada do filho, e enfim, chegou o dia do parto, mas o que poderia ter sido um momento de alegria, se tornou um problema. A criança nasceu mas enquanto ela ainda estava sob o efeito da anestesia, ela foi submetida a uma laqueadura sem o seu consentimento. Ao acordar, ela descobriu que tinha sido esterilizada sem o seu consentimento.

Quando soube que tinha sido laqueada sem sua autorização, Josiane decidiu entrar com um processo contra o estado da Paraíba. Foram quatros anos de processo, e em 2023, saiu o resultado da disputa judicial. A Justiça da Paraíba decidiu que o Estado iria lhe pagar uma indenização no valor de 20 mil reais por danos morais, podendo ainda recorrer da decisão. “O que se conclui da análise das provas produzidas é que não havia necessidade de que a Autora fosse submetida a uma laqueadura tubária bilateral naquela ocasião, isto é, imediatamente após o parto, quando ela ainda se encontrava sedada em razão do anestésico que lhe foi ministrado”, destacou o desembargador Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, relator do processo

Ao saber da história de Josiane, a ativista e psicóloga Durvalina Rodrigues conta que ficou estarrecida. Ela integra a Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba, organização que compõe a coordenação da Rede de Mulheres Negras no Nordeste. Ela observou que além da violência contra o seu corpo, Josiane também sofreu com a violência psicológica. “Como é que você entra na sala do parto para dar a luz a uma criança que tem toda uma simbologia de vida e quando você acorda, percebe que seu corpo foi mutilado, o que lhe trás um sentimento de morte e de violação de direitos”, disse.

Vale ressaltar que, de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde, a laqueadura só deve ser realizada de forma voluntária; é papel do Estado informar para a mulher a respeito desse método e nunca sob pressão ou coerção. Além disso, é recomendado que seja considerada uma alternativa apenas após a mulher receber todas as orientações sobre outras opções de planejamento reprodutivo disponíveis.

Outro ponto importante a ser levantado é que existe uma relação histórica de violações de direitos em relação às Mulheres Negras e laqueadura no Brasil, que passa por realizações de esterilizações forçadas e práticas discriminatórias. Embora a laqueadura tenha sido legitimada como um método contraceptivo voluntário, ainda existem preocupações sobre a possibilidade de mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, serem pressionadas ou mal informadas a respeito do procedimento. Outra questão é quanto à adequação do consentimento informado em alguns casos.

“Não existe justiça reprodutiva no SUS que atenda as necessidades e demandas das Mulheres Negras”

O que aconteceu com Josiane na Paraíba remete ao processo de esterilização forçada de mulheres no Brasil entre as décadas de 1970 e 2000. Valdecir Nascimento, que integra o Odara – Instituto da Mulher Negra, comenta que a Política de Natalidade vigente no Brasil vai na contramão do projeto de planejamento familiar defendido por ativistas negras e pelo movimento feminista no país. “A região Norte e Nordeste do país foram as mais afetadas por essas políticas, inclusive muitos políticos nas regiões trocavam o voto por uma ligadura ou laqueadura de trompas na Bahia na região do recôncavo, municípios como Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, entre outros. Essa prática era corriqueira”, afirmou. 

Ela lembra que muitas mobilizações foram realizadas pelas mulheres negras durante o período, citando a criação do Fórum Nacional contra a Esterilização em Massa de mulheres negras e indígenas e das denúncias feitas ao Conselho Nacional de Medicina sobre as práticas de controle de natalidade dos centros de reprodução humana e de laboratórios que usavam mulheres negras e indígenas como cobaias para experimentos e testes de métodos contraceptivos, a exemplo do DIU – Dispositivo Intrauterino, injeções e implantes subcutâneos. “Além de denúncias, produzimos uma cartilha informativa, manifestações públicas e notificações de diversos casos. O movimento desenvolveu estudos demográficos com o apoio da demógrafa Elza Bercó, sobre taxas de fecundidade/natalidade das mulheres negras para comprovar o fenômeno”, relembrou.

Valdecir ainda traz a reflexão sobre a possibilidade de afirmar que os estudos contemporâneos sobre violência obstétrica apontam fragilidades nas políticas integrais de saúde da mulher. “É latente a ausência das políticas de pré natal e do cumprimento do aborto legal, isso comprova como o fator racial e territorial sempre fez das supostas políticas de planejamento familiar serem, em verdade, políticas de controle populacional”.

O que garante a legislação estadual sobre casos de violência obstétrica?

Na Paraíba existem leis que tratam de violência obstétrica e que asseguram direitos às gestantes. A Lei 11.039/17 proíbe o uso de algemas em mulheres apenadas ou internas durante trabalho de parto e em período de internação pós-parto, tanto em estabelecimentos de saúde públicos e privados; Já a Lei 10.548, institui um Pacto Estadual Social para Humanização da Assistência ao Parto e Nascimento, a legislação coloca a pessoa que gesta na autonomia de suas escolhas, como o direito de optar por procedimentos que possam lhe dar conforto e bem-estar, incluindo a escolha em usar medicação analgésica e anestésica; Outras duas leis a se destacar é a 10.648, que regulamenta a presença de doulas durante o pré-natal, o trabalho de parto e o pós-parto; e a Lei 9.602, que garante a obrigatoriedade das maternidades informarem sobre o direito à presença de alguém que acompanhe a paciente durante o parto e pós-parto.

Justiça Reprodutiva na Paraíba

Durvalina fala sobre a dificuldade em obter dados concretos no que diz respeito a direitos sexuais e direitos reprodutivos na Paraíba. “Nem um, nem outro direito são dados às mulheres negras, sobretudo numa perspectiva que historicamente lhe é negada na sociedade e também negada a sua humanidade. É como se nos fosse tirado a nossa singularidade, o que temos de melhor, a nossa subjetividade. Não é à toa que nós somos as que mais sofrem violência obstétrica e as que mais morrem no parto”, afirma. Durvalina também reflete que a Justiça Reprodutiva não é somente pelo direito ao aborto, nem é intercâmbio ou troca entre justiça e direitos reprodutivos, é mais que isso. Ela fazendo referência à pesquisadora Emanuelle Goes, para afirmar que a Justiça Reprodutiva também está vinculada ao extermínio de jovens negros, na perspectiva de parir, ver seus filhos nascerem e crescerem, pois o extermínnio da juventude também causa a morte simbólica desta mulher. 

Um desafio apontado por Durvalina no que diz respeito à luta por Justiça Reprodutiva é que o racismo dificulta o acesso à saúde e a demais serviços. Outra questão que ela aponta é a efetivação das políticas públicas, dentro do SUS e no tocante à saúde das mulheres, tanto na atenção básica, como na média e na alta complexidade. “Por exemplo, na atenção básica nós temos a saúde da mulher, dentro disso, temos as diretrizes para efetivação das políticas públicas e a saúde das mulheres negras. Gostaria de perguntar quantas vezes nós dialogamos dentro da saúde, com os Conselhos de Saúde ou com os Comitês Técnicos de Saúde da População Negra sobre a saúde desta mulher, especificando essa questão da pluralidade das mulheres considerando todas as especificidades, o seu histórico, a sua condição sócio econômica”, disse.

Josiane foi mais uma mulher nordestina que viveu uma situação de injustiça reprodutiva, tendo o seu direito de decisão sobre o seu corpo negado. A situação vivida por ela mostra a presença viva do racismo científico no controle populacional a partir da violação dos corpos e vidas das mulheres. É urgente que se amplie o olhar sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos numa perspectiva de justiça social.

*O nome é fictício, a identidade da vítima é preservada.

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