
Por Redação Odara
Da violência policial às injustiças reprodutivas, das desigualdades no trabalho à pobreza menstrual, o racismo atravessa corpos e mentes, produzindo dor e silenciamentos
Durante o mês de setembro, somos convocados a refletir sobre as formas de cuidado da saúde mental. No dia 10, em especial, marca-se o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. No entanto, há uma dimensão que raramente ocupa o centro desse debate: o impacto do racismo no adoecimento mental da população negra. Falar sobre suicídio no Brasil exige reconhecermos que o racismo é um fator importante de sofrimento psíquico em nossa sociedade.
O Sistema Único de Saúde (SUS) registrou, ao longo de 2023, 11.502 internações por tentativas de suicídio, o que equivale a uma média de 31 casos por dia. O crescimento é particularmente preocupante em estados como Alagoas (aumento de 89%), Paraíba (71%) e Rio de Janeiro (43%), todos estes com população majoritariamente negra, segundo o IBGE: 67,4% em Alagoas, 63,5% na Paraíba e 60% no Rio de Janeiro. Esses dados reforçam que a questão racial não deve ser tratada como um recorte, mas como uma dimensão estruturante. É preciso aprofundar a análise para compreender como os fatores atrelados ao racismo influenciam diretamente na saúde mental e, portanto, precisam estar no centro da interpretação desses indicadores.
O perfil das internações mostra com clareza a vulnerabilidade dos mais jovens. Em 2023, o grupo de 20 a 29 anos liderou os registros, com 2.954 internações, seguido pelo grupo de 15 a 19 anos, com 1.310 casos. Entre crianças de 10 a 14 anos, foram 601 internações, quase o dobro do observado em 2011. Juventude e adolescência negras, alvos da violência racista cotidiana, estão entre os grupos mais atingidos. Esses números não são neutros: carregam as marcas históricas de uma sociedade que insiste em desvalorizar a vida negra.
Prevenir o suicídio, portanto, não é apenas ampliar a oferta de psicólogos ou psiquiatras, embora isso seja urgente. É, sobretudo, enfrentar o racismo que adoece e mata. Isso significa investir em políticas públicas específicas, que garantam acesso universal e equitativo à saúde mental, com profissionais capacitados a acolher a realidade racial brasileira. Significa também valorizar as práticas comunitárias de cuidado que emergem dos próprios territórios negros: redes de afeto, espiritualidade, cultura, coletivos de mulheres e juventudes que já produzem saúde e resistem ao adoecimento.
O racismo é um sistema estruturante que define condições de vida, acesso a direitos e possibilidades de futuro. É ele que sustenta desigualdades em moradia, educação, trabalho e saúde; que normaliza a violência policial e a mortalidade precoce da juventude negra; que mantém mulheres negras como as mais exploradas no mercado de trabalho e as mais desassistidas nos serviços de saúde. Viver sob a pressão constante dessas violências é adoecedor.
E esse adoecimento se expressa de muitas formas. O subemprego e a informalidade, que afetam de modo desproporcional a população negra, geram instabilidade financeira permanente. A falta de lazer e de espaços culturais acessíveis reforça a sensação de exclusão e cansaço. A chamada escala 6×1, que obriga as trabalhadoras e trabalhadores a cumprirem seis dias consecutivos de jornada com apenas um dia de descanso, é outro fator que interfere diretamente na saúde mental. Esse modelo, comum em setores que concentram mão de obra negra e feminina, intensifica o desgaste físico e emocional, limita o tempo de lazer, de convivência familiar e comunitária, além de reduzir a possibilidade de acesso à cultura e à educação continuada.
A ausência de segurança pública, o saneamento básico precário, a falta de transporte público gratuito e a carência de alimentação de qualidade agravam esse quadro, compondo um cotidiano de sobrecarga que se transforma em sofrimento psíquico.
SAÚDE MENTAL PARA POPULAÇÃO NEGRA
A população negra é a principal vítima de mortes decorrentes de intervenções policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A violência começa cedo: o mesmo levantamento mostra que crianças e adolescentes negros entre zero e 17 anos são também as maiores vítimas de estupro, com exceção apenas na faixa até 3 anos de idade. Como falar em equilíbrio emocional diante de uma vida que já nasce marcada pela brutalidade?
Como ter saúde mental quando mulheres negras enfrentam barreiras permanentes à mobilidade social, e mesmo quando conseguem ascender profissionalmente, são atravessadas pela sensação de não pertencimento em ambientes dominados pela branquitude? Como ter saúde mental quando o desemprego pesa mais sobre nossos corpos?
O ano de 2025 escancara a complexidade da violência que atinge as mulheres negras, sobretudo na Bahia e em outros estados do Nordeste. Em 2024, o número de feminicídios voltou a crescer e alcançou o maior patamar desde o início da série histórica, em 2015. Foram 1.492 casos, um aumento de 0,7% em relação a 2023, mantendo a escalada de assassinatos de mulheres motivados por sua condição de gênero. Na Bahia, em 2024, foram registrados 106 casos, segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado. Em 2025, até o final do mês de agosto, foram registrados 60 casos de feminicídio, segundo a Polícia Civil (BA).
INJUSTIÇAS REPRODUTIVAS
Falar em saúde mental da população negra também exige olhar para as injustiças reprodutivas que recaem, sobretudo, sobre as mulheres negras. A violência obstétrica, que inclui desde a recusa de anestesia até humilhações verbais durante o parto, segue sendo uma realidade cotidiana nos hospitais públicos do país. Não por acaso, mulheres negras estão entre as que mais morrem por causas evitáveis durante a gestação e o parto, evidenciando a negligência institucionalizada sobre seus corpos.
A ausência de políticas reprodutivas justas também se expressa na negação do direito ao aborto legal e seguro. Muitas mulheres negras acabam morrendo em decorrência de procedimentos inseguros, empurradas para a clandestinidade pela desigualdade de classe e raça. Essa violência atravessa gerações, gerando traumas, perdas e adoecimento psíquico.
Os abusos sexuais vividos por meninas e adolescentes negras, já apontados em pesquisas como mais frequentes nesse grupo, também deixam marcas profundas na saúde mental, muitas vezes sem acesso a acolhimento psicológico ou jurídico.
A tudo isso soma-se a pobreza menstrual, que atinge de forma brutal meninas e mulheres negras em situação de vulnerabilidade. A falta de acesso a absorventes e a condições mínimas de higiene reforça o sentimento de indignidade e exclusão.
QUEM PODE PRECISAR DE CUIDADO?
Quando falamos em saúde mental, ainda nos deparamos com outra barreira: o acompanhamento psicológico aparece como algo distante da realidade da maioria das famílias negras. De um lado, há o custo elevado dos atendimentos privados, a falta de oferta adequada de atendimentos pelo SUS; de outro, persiste o tabu em torno da ideia de procurar ajuda.
Os números confirmam esse cenário. Apenas 5% dos brasileiros afirmam realizar terapia de forma contínua, segundo pesquisa do Instituto Cactos em parceria com o Atlas Intel. Outros 19% já passaram por algum tipo de atendimento, mas de forma pontual. Por outro lado, um dado chama atenção: 60% das pessoas que fazem terapia afirmaram ter começado durante a pandemia, de acordo com o Instituto FSB. Isso mostra que a busca por cuidado cresce em momentos de crise, mas não se sustenta como prática regular.
Entre a população negra, que já enfrenta sobrecarga de trabalho, racismo cotidiano e ausência de políticas públicas consistentes, a consequência é a naturalização do sofrimento: seguimos resistindo, mas muitas vezes sem acesso a espaços de escuta e cuidado que poderiam salvar vidas.
ONDE PROCURAR AJUDA
Se você ou alguém próximo está passando por sofrimento psíquico, lembre-se: não é preciso enfrentar isso sozinho. Existem serviços públicos e comunitários em Salvador (BA) e também alternativas online que podem oferecer apoio e acolhimento.
Atendimentos Online:
PsyMeet Social – plataforma que conecta pessoas a psicólogos/as com atendimentos a preços sociais.
Pra Preto Psi – rede de profissionais negros, com possibilidade de negociação de valores.
CVV – Centro de Valorização da Vida – atendimento gratuito e sigiloso por telefone (188), chat e e-mail. O tempo de espera pode variar devido à alta demanda, mas o acolhimento é garantido.
Atendimentos em Salvador
CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) – atendimento gratuito pelo SUS em saúde mental.
Unidades de Saúde da Família (USF) e UPAs – podem realizar encaminhamentos para acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
Faculdade FTC
Av. Luis Viana Filho, n° 8812 – Paralela, Salvador
Tel.: 3281-8073(Cadastro por telefone, por haver taxa social)
UNIJORGE
Av. Luis Viana Filho, n° 6775 – Paralela, Salvador
Tel.: 3206-8015 / 3534-8000 (Cadastro por telefone, por haver taxa social)