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No Maranhão, debate sobre Dignidade Menstrual faz coletivo de meninas e adolescentes crescerem politicamente

A discussão começou a ganhar mais visibilidade durante a pandemia, e entre os vários aspectos deste problema, ele atinge diretamente o direito das meninas à educação

Por Eduarda Nunes

Ilustração: Ani Ganzala

Uma questão de higiene, saúde coletiva, acesso à educação e direitos sexuais e reprodutivos, a dignidade e a pobreza menstrual são termos que recentemente têm sido incorporados no nosso dia a dia, mas que desde sempre interferiu na rotina das meninas, mulheres e outras pessoas que menstruam. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em 2022, 74% das mulheres que vivem no Nordeste consideram que a menstruação atrapalha na rotina. 40% delas sofrem pela pobreza menstrual. Isto é, a dificuldade no acesso a absorventes, papel higiênico, sabonete, água, assistência médica e outros elementos que garantam um ciclo menstrual saudável e seguro.

O tema passou a ter maior espaço por conta da pandemia. A pobreza menstrual foi um dos fatores que se destacaram nas razões da evasão escolar – que aumentou em 171% no segundo trimestre de 2021 em relação ao mesmo período em 2020, segundo a organização Todos Pela Educação. Além disso, em 2021, o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que determinava que estudantes do ensino fundamental e médio, mulheres presidiárias e em situações de vulnerabilidade social pudessem receber absorvente de forma gratuita, foi aprovado na Câmara Federal e no Senado, mas vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro, o que chamou ainda mais atenção para a problemática. O programa consta no Projeto de Lei 4.968 de 2019, de autoria da então Deputada Federal Marília Arraes, e em março de 2022 teve todos os vetos derrubados pelo Congresso Nacional.

2021 também foi o ano em que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) lançaram o relatório sobre o cenário do Brasil nesse tema. Intitulado “POBREZA MENSTRUAL NO BRASIL DESIGUALDADES E VIOLAÇÕES DE DIREITOS”, o estudo traz dados que demonstram como crianças e adolescentes que chegam a fase da menstruação têm seus direitos à educação, saúde e moradia digna violados pela pobreza menstrual – que não se limita somente ao acesso absorvente. O documento demonstra que, no Brasil, não tem papel higiênico nas escolas de 249 mil meninas brasileiras e que ao menos 416 mil escolas não têm uma pia adequada para o uso.

Dados sobre a região Nordeste, analisados pela Agência Tatu, contam que mais de 121 mil meninas estudam em escolas que não tem banheiro em condições de uso; mais de 249 mil em escolas que não tem papel higiênico no banheiro; mais de 984 mil não dispões de sabão para lavar as mãos. Fatores que implicam ação tanto dos poderes públicos como da sociedade civil para que resoluções de curto, médio e longo prazo possam ser tomadas.

 Meninas e adolescentes trazendo a pauta Dignidade Menstrual para dentro das escolas

Ao fim de 2020, estimuladas a partir da interação promovida nos clubes dos Centros Educa Mais (escolas em tempo integral) um grupo de 10 meninas começou a debater Dignidade Menstrual dentro das salas de aula em São Luís do Maranhão. Assim foi criado o Coletivo Menina Cidadã, que hoje tem mais de 60 jovens (entre homens e mulheres), entre 13 e 25 anos, que atuam a partir da Macrorregião da Cidade Operária e que também compõem a Coalizão Pela Defesa e Promoção Da Dignidade Menstrual, que analisam as políticas públicas relacionadas ao tema em todo o Brasil.

A partir de uma “pesquisa de campo” para entender o que estava afetando mais os estudantes na pandemia, foi constatada a pobreza menstrual como um fator relevante. “A gente percebeu que algumas meninas não tavam indo pra escola, não tavam tendo acesso a comida, por exemplo, e aí não tinham condições de comprar absorvente. E aí, a gente parou pra pensar que tinham meninas dentro da nossa comunidade que não tinham acesso a absorvente e que por isso usavam outras coisas pra estancar no período da menstrual”, conta Júlia Nabate, 18 anos, uma das lideranças do grupo, que hoje é estudante de pedagogia, mas que a época em que se integrou ao coletivo era estudante do ensino médio.

Panos inadequados, jornal e miolo de pão eram alguns dos materiais utilizados pelas meninas e adolescentes para substituir o absorvente. O que estimulou a organização de rodas de conversa sobre o assunto e na intenção de criar possibilidades de apoio para as estudantes que se encontravam nessa situação.

Esses encontros foram acontecendo em diferentes escolas, sempre protagonizados pelos próprios estudantes, e em muitos casos enfrentou a resistência dos gestores. Isto porque, além das questões econômicas e educacionais que a dignidade menstrual toca, ela também diz sobre sexualidade, um tema que é temido e sufocado pelos conservadores. Júlia conta que “tem gestor que fica ouvindo as rodas e inibe as estudantes a participarem, mas aí a gente desenvolveu um mecanismo de que as meninas não falam, elas escrevem”. E a partir disso o grupo ia conversando sobre dúvidas como “se absorvente interno tira a virgindade”, “o que comer quando está menstruada”, se podiam “andar no sol e se fazer sexo durante o período menstrual” sem ninguém saber de quem partiu as perguntas.

E a partir desse movimento, o grupo foi crescendo e sendo convidado para conversas sobre outros temas que também atravessam o cotidiano da vida escolar, como racismo, violência de gênero e bullying. Outros pontos importantes que demonstraram o crescimento político dessas meninas foram a inserção dos estudantes meninos nas rodas de conversa – até meados de 2022 as rodas de conversas só recebiam as meninas – e a articulação com a Unicef, que se deu a partir do vínculo que o grupo tem com a Fundação Justiça e Paz Se Abraçarão.

Júlia conta que inserir os meninos nas conversas foi um ponto estratégico e importante porque um dos fatores que impedem que as meninas e mulheres vivam seus períodos menstruais fora de casa de modo mais saudável são os tabus que existem em torno disso, a vergonha e o medo de perceberem que estão menstruadas. “A gente vê o desenvolvimento deles agora quando a gente volta numa escola que a gente já foi e a gente vê eles querem falar mais sobre o assunto. Das meninas não terem mais vergonha, de estar tomando autonomia dentro da escola para quando chegar o absorvente ela possa cuidar daquele produto para elas”. Essa inserção foi importante para diluir estigmas, brincadeiras e comentários que inibiam meninas que estivessem menstruadas a fazer suas trocas de absorvente e outras ações relacionadas ao período menstrual.

A partir da articulação com a UNICEF, o coletivo Menina Cidadã cresce ainda mais. Isso porque além de fomentar o debate sobre a Dignidade Menstrual e estimular que os e as estudantes identifiquem e reivindiquem que suas escolas ofereçam melhores condições para que o ciclo menstrual não interfira no acesso à Educação, elas também puderam começar a também doar absorventes em seus encontros formativos com os meninos e meninas. E, além disso, elas também puderam ampliar ainda mais a incidência com órgãos institucionais que interligam as meninas e mulheres à dignidade menstrual.

Esse foi um movimento que já havia iniciado ainda em 2020, quando as adolescentes estavam realizando as primeiras rodas de diálogos nas escolas. Ter acesso aos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), e o Conselho Tutelar, foi um passo considerado natural para o grupo, que desde o início tinha o intuito de ser efetivo.

“A gente não tinha ideia. A gente ia pra escola e ouvia que a menina tinha sido assediada pelo professor, mas não tinha falado pra gestão escolar porque a gestão não ia socorrer aquela menina, ela não sentia que seria acolhida. Então ter o auxílio da Defensoria Pública, que é do outro lado da cidade, pra gente que mora aqui na periferia, foi muito bom porque a gente consegue trazer eles pra cá”, conta Júlia Nabate. “A gente não sabia quem eram as pessoas que trabalhavam e hoje são pessoas que tão caminhando junto com a gente”, complementa.

 Políticas Públicas pela Dignidade Menstrual no Maranhão: “nunca foi só sobre o absorvente”

Em 2021, a Secretaria de Educação do Maranhão anunciou a distribuição de absorventes na Rede Pública Estadual de Ensino. Com o objetivo de atingir cerca de 150 mil estudantes, o estado deu um pontapé inicial para a garantia da dignidade menstrual e do acesso à Educação de milhares de estudantes. Uma ação que é extremamente importante, mas que no entendimento de Júlia, ainda não consegue surtir o impacto que poderia ter. Segundo a estudante de pedagogia, o produto está sendo distribuído, mas as informações ligadas à educação menstrual não.

Segundo os relatos que o grupo recebeu e constatou, nem todo mundo sabe quando os kits chegam e às vezes é preciso lidar com gestores assinalando que somente um pacote de absorvente é o suficiente para a estudante passar por todo o ciclo menstrual dela. “Eles não tão fazendo de uma forma efetiva e acolhedora pra que a menina ou a pessoa que menstrua vá dentro da escola, seja acolhida e receba informação também, porque além da distribuição de absorvente, a gente quer que eles se informem. As meninas que têm um fluxo mais intenso, por exemplo, precisam saber qual absorvente usar, qual vai fazer bem pro corpo dela, que não vai dar alergia e que usar absorvente por muito tempo pode dar alguma infecção”, comenta Júlia.

Ainda em 2020, no início da atuação do grupo, foram realizadas escutas e pesquisas nos bairros onde os integrantes viviam sobre políticas públicas que podem garantir mais dignidade para a população da macrorregião da Cidade Operária. Os depoimentos e resultados dessa consulta foram sistematizados numa Carta-Demanda, que em 2021 foi entregue à Defensoria Pública do Maranhão. No documento também estão questões que foram identificadas ou relatadas pelos estudantes das escolas que o grupo já esteve. Uma série de reivindicações que podem suplementar ações do poder legislativo e executivo do estado e do município de São Luís e que demonstram como as ações da sociedade civil também são importantes na garantia da efetividade das políticas públicas.

“O período menstrual é diverso, cada pessoa tem seu, e aí precisa ser pensada uma política pública que seja efetiva para além de só distribuir o absorvente”, defende Júlia.

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